Polícias de seis estados brasileiros mataram, em média, seis pessoas negras por dia em 2020 —uma vítima a cada quatro horas. O número cai para uma morte por dia quando o alvo da ação policial é uma pessoa branca. Os números se referem ao primeiro ano da pandemia de covid-19.
Os dados foram enviados pelos governos de Bahia, Ceará, Piauí, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo via LAI (Lei de Acesso à Informação) em resposta a pedido feito pela Rede de Observatórios de Segurança, do Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), que divulga hoje o estudo A Cor da Violência.
Para Pedro Paulo da Silva, um dos pesquisadores do estudo, a alta proporção de negros mortos evidencia o racismo, que consiste na desumanização de pessoas negras, nas polícias do país.
“Precisamos levar o racismo a sério. Isso é entender que o racismo tem uma dimensão de desumanização, que entende que pessoas negras podem e devem ser mortas. Na prática, o racismo é isso: a pessoa se torna não humana”, diz Pedro Paulo da Silva, pesquisador da Rede de Observatórios.
Proporção de mortos é maior do que presença na população
Entre 2019 e 2020, houve queda de 31% no total de mortes causadas pelas polícias nos estados analisados, mas a disparidade continua a mesma.
Em 2019, 82% dos mortos pela polícia eram negros, enquanto os brancos eram 18%. Em 2020, a proporção se manteve: 83% e 17%, respectivamente. Os dados excluem casos em que a cor da vítima não foi assinalada.
No Brasil, pessoas brancas são 43,2% da população e pessoas negras —a soma de pretos e pardos— são 55,7%, de acordo com dados mais atualizados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A disparidade entre a população negra total e a população negra morta pela polícia se mantém nos estados.
Pernambuco registra a maior diferença —61,9% da população é negra e 97,3% dos mortos pela polícia são negros. Piauí registra a menor diferença —17 pontos percentuais, com 86% dos mortos pela polícia sendo negros. O pedido de dados também foi feito ao Maranhão, mas o estado não faz a classificação das vítimas por cor ou raça.
Pedro Paulo avalia que o estudo traz dados suficientes para ampliar o debate sobre como a população negra é vista pela sociedade brasileira, independentemente da região em que vive ou se é maioria ou minoria do estado analisado.
“A população negra é tida como inimiga do estado brasileiro desde sempre, aquela que precisa ser controlada. Levar o racismo a sério é ver que historicamente havia os capitães do mato para controlar escravizados, depois a polícia para controlar a capoeira, até chegar nos dias de hoje. É como se tivesse uma genealogia da polícia que está conectada ao racismo historicamente”, afirma o pesquisador.
Na análise por capitais dos estados analisados, o estudo mostra que em Fortaleza, Recife e Salvador, todos os mortos pela polícia em 2020 eram negros. A taxa é de 90% no Rio de Janeiro, 70% em São Paulo e 94% em Teresina.
Solução passa por reestruturação do controle externo
Entre os números, estão casos como o de Edson Arguinez Júnior, 20, e Jhordan Luiz Natividade, 17, jovens negros mortos após serem baleados em uma ação policial em Belford Roxo (RJ) em dezembro de 2020. Câmeras de segurança flagraram um policial militar atirando nas vítimas em uma moto sem motivo aparente. O soldado Jorge Luiz Custódio e o cabo Júlio Cesar Ferreira dos Santos se tornaram réus na Justiça e respondem por homicídio qualificado.
“Eles não podiam andar de moto só porque são negros? Eu ‘tô’ colocando a minha cara a tapa porque o seu filho pode ser o próximo”, desabafa a mãe de Edson, Renata Santos de Oliveira.
Por ser uma lógica inerente à sociedade brasileira, Pedro Paulo diz acreditar que uma mudança para evitar casos do tipo passa pelo controle externo da atividade policial —função do Ministério Público—, mas não só.
“Deveríamos estar pensando numa reestruturação do controle externo da polícia. Mas não existe solução fácil, uma decisão única, que vai resolver toda essa política”, alerta Pedro Paulo.
Um estudo inédito do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, publicado com exclusividade pelo UOL em novembro, mostra que os Ministérios Públicos do Rio de Janeiro e de São Paulo pediram à Justiça em 2016 o arquivamento de nove em cada dez casos de mortes provocadas por policiais nas capitais fluminense e paulista. Especialistas viram nos dados omissão dos MPs e falha no controle das polícias.
Os dados divulgados pela Rede de Observatórios corroboram os números mais recentes do Atlas da Violência 2021, produzido pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Público. O Atlas já trazia que nos últimos dez anos, uma pessoa negra teve ao menos duas vezes mais riscos de ser assassinada do que qualquer outra no Brasil.
Em 2019, essa diferença foi a segunda maior registrada no período: 2,6 vezes. Naquele ano, negros foram 75,7% das vítimas de homicídios no Brasil e eram 56,8% da população.