Um valor que poderia garantir por um ano inteiro o pagamento do auxílio emergencial de R$ 375 para quase 84 mil mães chefes de família no Brasil. O necessário para construir, equipar e manter funcionando por meio século uma Casa da Mulher Brasileira nos moldes da recém-inaugurada em Ceilândia (DF). Ou ainda o suficiente para imunizar com duas doses de CoronaVac a população feminina da cidade do Rio de Janeiro. Esse é o tamanho do recurso que o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) deveria ter aplicado em políticas públicas voltadas para mulheres no Brasil, mas que ficou no caixa do governo federal nos últimos dois anos e meio, ainda que sua aplicação estivesse autorizada e houvesse planos concretos para gastar o dinheiro.
Um levantamento exclusivo da revista AzMina mostra que entre janeiro de 2019 e julho de 2021, o Planalto não gastou R$ 376,4 milhões dos R$ 1,1 bilhão disponíveis para 10 rubricas que têm as mulheres como público-alvo no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e no Ministério da Saúde. É um terço do total de recursos previstos no orçamento da União, carimbados especificamente para este conjunto de políticas públicas e com emprego autorizado pelo Congresso Nacional. O dinheiro, porém, não foi usado para a sua finalidade e possivelmente retornou ao caixa único, abastecendo outros ministérios ou mesmo servindo para fomentar o toma lá dá cá que sustenta o apoio do Centrão ao presidente da República.
Entre os valores que não foram utilizados, está a maior parte dos recursos que deveriam ter servido para a construção e equipagem de Casas da Mulher Brasileira — estruturas de acolhimento, apoio, proteção e acesso à justiça para vítimas de violência doméstica. Desde que Bolsonaro assumiu, dos quase R$ 115 milhões disponíveis para essa política pública, apenas R$ 1 milhão foi efetivamente gasto. Para a Rede Cegonha, a estratégia de planejamento reprodutivo e atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério do Ministério da Saúde, dos R$ 270 milhões autorizados, apenas R$ 182 milhões foram desembolsados e R$ 89 milhões ficaram pelo caminho. Uma contradição e tanto para um governo que tem entre seus lemas a defesa da família desde a concepção.
O período da pandemia marcou os piores desempenhos de Bolsonaro na execução do orçamento voltado às mulheres. As quatro rubricas analisadas pela reportagem no Ministério da Saúde, que tiveram 86,3% dos recursos devidamente empregados em 2019 — seu primeiro ano de mandato — passaram a um patamar de execução inferior a 70% em 2020 e 2021. O problema é generalizado nas respostas à pandemia, conforme mostrou o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em relatório lançado no final de julho: enquanto o número de mortos pela Covid-19 no Brasil atingiu seu pico nos meses de março e abril de 2021, a execução orçamentária destinada para o combate ao coronavírus esteve nos níveis mais baixos no início deste ano.
Quando o recorte de defasagem de investimentos em políticas voltadas para mulheres se detém apenas sobre os recursos de seis rubricas abrigadas atualmente no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a redução nos gastos fica ainda mais evidente. Depois de executar mais de 90% do autorizado em 2019, no ano seguinte a execução orçamentária do governo federal caiu para 30,2%.
O patamar está mantido em 2021 — até julho, 29,14% dos recursos autorizados para políticas públicas que garantem os direitos das mulheres foram empregados — e portanto, esse percentual pode aumentar até dezembro. O problema é que o valor total destinado a estas ações caiu pela metade, de R$ 125 milhões em todo o ano de 2020 para R$ 55 milhões até julho de 2021.
Os valores foram calculados a partir de consulta aos portais do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP) — que permite buscar rubricas orçamentárias por palavra-chave — e do Siga Brasil, do Senado Federal, que fornece acompanhamento em tempo real da execução das despesas do governo federal. Mais sobre a metodologia desta análise pode ser lida no final da reportagem.
Inaugurações apesar dos recursos insuficientes
Lançada no governo Dilma Rousseff (PT) em 2013, a Casa da Mulher Brasileira reúne em um só espaço físico diversos serviços de atendimento integral a vítimas de violência: alojamentos para receber as mulheres que saíram de casa para se afastar dos agressores, salas para consultas com psicólogas e assistentes sociais, delegacia especializada em crimes contra a mulher e núcleos do Ministério Público e da Defensoria para aconselhar e encaminhar medidas judiciais protetivas. Algumas casas preveem inclusive espaços para cursos profissionalizantes.
A promessa do governo federal quando lançou a ação era chegar a pelo menos uma cidade em cada um dos 27 estados da federação. Mas, apesar da relevância (no final de 2015, 18 estados haviam assinado adesão à política pública), apenas oito casas foram entregues até hoje. Duas delas inauguradas durante o governo Bolsonaro, que apesar disso teve execução orçamentária insuficiente para construir, equipar ou mesmo manter sequer uma dessas casas — pelo menos considerando os contratos fechados pelo governo do Distrito Federal que somam quase R$ 10 milhões para a construção de quatro casas e a manutenção ao longo de dois anos de uma quinta. Trocando em miúdos, o investimento total do atual presidente nessa política pública (pouco mais de R$ 1 milhão) não bastaria para financiar o equipamento, de acordo com os valores de contratos disponíveis para consulta. Segundo apurou o portal UOL, em julho, a Casa da Mulher Brasileira de São Paulo, inaugurada no final de 2019 com a presença de Damares Alves, está sendo mantida apenas com recursos da prefeitura da capital paulistana.
Chama atenção o fato de que em 2019, nenhum real do valor autorizado pelo congresso para a construção das unidades foi pago. Em 2020 e 2021, o dinheiro efetivamente gasto é inferior a 3% do previsto.
A negligência com a Casa da Mulher Brasileira é anterior a Bolsonaro, embora tenha piorado em seu mandato. Em 2017, o ex-presidente Michel Temer (MDB) também destinou zero reais para esses equipamentos, mas seu mandato acumula um valor total aplicado superior, sobretudo graças à execução orçamentária de 2016, ano em que Dilma Rousseff foi afastada do poder e no qual quase R$ 20 milhões foram gastos nesta política.
“O que aconteceu com a Casa da Mulher Brasileira é que não se conseguiu executar o recurso e então, a tendência é a diminuição ao longo dos anos. Teve um problema de gestão, provavelmente agravado pela pandemia”, acredita Carmela Zigoni, assessora política do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), que estuda o orçamento do governo federal destinado para os direitos das mulheres.
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos atribui o baixo desempenho à complexidade dos projetos necessários para essa política pública. “Vai muito além da mera construção do espaço físico, pois demanda a disponibilização de vários serviços públicos no âmbito federal, estadual e municipal, cuja execução é descentralizada”, justificou a pasta através da sua assessoria de imprensa. Apesar disso, anuncia que há, “no momento, 23 novas unidades em fase de implementação”, sem detalhar o que isso quer dizer.
Saem as políticas para mulheres e entra a proteção à vida e fortalecimento da família
O orçamento público é todo formatado a partir de códigos e possui uma hierarquia rigorosa. Um ‘programa’ é como se fosse um armário com várias portas que seriam as ‘ações’ e nelas estão gavetas — no linguajar dos técnicos do tesouro, os ‘planos orçamentários’. O armário serve para acomodar dinheiro para uma área comum mesmo quando ele será gasto por diferentes setores do governo. Era o caso do Programa 2016, chamado Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento a Violência, que até 2019 era o principal guarda-chuvas de políticas públicas para mulheres, mas foi extinto por Bolsonaro.
Previsto no Plano Plurianual 2016-2019, o programa tinha objetivos claros relacionados ao combate da desigualdade de gênero: promover a autonomia econômica, social, sexual das mulheres, fortalecer sua participação política, fomentar o diálogo com a sociedade civil e com os movimentos sociais e enfrentar todas as formas de violência contra as mulheres. Outra meta era a transversalidade das políticas dentro do governo federal e entre todas as esferas governamentais – nos estados e nos municípios.
Tudo foi elaborado após debates públicos para a elaboração dos Planos de Políticas Nacionais para Mulheres. “Tivemos a presença de uma diversidade muito grande de mulheres nessa discussão, o que acabava contemplado no Programa: mulheres quilombolas, rurais, indígenas, urbanas, negras, ciganas…”, ressalta Carmela Zigoni.
Mas Bolsonaro substitui tudo isso no Plano Plurianual que elaborou para o período 2020-2023. O Programa 2016 desapareceu, e em seu lugar entrou o Programa 5034 – Proteção à vida, fortalecimento da família, promoção e defesa dos direitos humanos para todos. A palavra “mulher” aparece em apenas um objetivo do novo armário, que coloca ênfase clara no conceito de família.
“O desenho que vinha sendo construído desde 2004 mudou radicalmente e agora adquire um viés mais conservador”, critica o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) em relatório lançado no início deste ano que faz um balanço do orçamento do governo federal.
Como consequência, várias portas (ações) desse armário desapareceram ou foram fundidas com outras, dificultando o controle social e reduzindo a transparência, conforme registra um relatório da Comissão Externa de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal.
Bolsonaro também tentou extinguir uma das duas únicas portas preservadas do programa anterior, a ação 218B – Políticas de Igualdade e Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Se dependesse exclusivamente da presidência da República, o orçamento para ela estaria zerado em 2020 e em 2021. Os projetos de lei enviados do Poder Executivo para a Câmara Federal não incluíram essa ação orçamentária no texto.
Foi a insistência da bancada feminina que recriou a ação 218B no orçamento e, desde então, todo o recurso que a alimenta é determinado pelos parlamentares. “A ação é composta por dotação orçamentária exclusivamente oriunda de emendas impositivas de iniciativa do Congresso Nacional”, admite a pasta comandada por Damares Alves. Segundo a nota enviada pela assessoria de imprensa, no âmbito do poder Executivo, essa política pública está contemplada dentro de outra rubrica, de número 21AR (Promoção e Defesa de Direitos para Todos), mas ela abrange outras 21 destinações orçamentárias para públicos diversos, como pessoas com deficiência, quilombolas, idosos, juventude e serve até para garantir medidas de combate ao trabalho escravo.
A Comissão Externa de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados calculou que os valores autorizados nos programas específicos para mulheres dentro do orçamento de direitos humanos e minorias de 2020 cresceram 144% em comparação com os projetos de lei encaminhados pelo Executivo. Segundo os técnicos, “a expansão foi inteiramente proporcionada pela atuação da Câmara dos Deputados e do Senado Federal” através de emendas parlamentares. “Em realidade, na proposta do Poder Executivo houve um decréscimo de R$ 2,1 milhões [para políticas destinadas às mulheres]”, concluem.
Bolsas para vítimas de violência também caíram
Dados fornecidos pelo Ministério da Justiça à reportagem via Lei de Acesso à Informação revelam outra face do descaso com a garantia de direitos das mulheres que não aparecem nas análises orçamentárias. Recursos do Ministério da Justiça destinados a dois importantes projetos estão caindo vertiginosamente sob Bolsonaro.
No caso mais impressionante, o programa chamado Protejo, que paga bolsas a jovens em situação de violência doméstica como incentivo para frequentarem cursos de capacitação em diferentes áreas gastou, ao todo, R$ 3,3 mil no primeiro semestre de 2021. Em 2019, essa política pública recebeu investimentos de R$ 64,7 mil.
Já o Projeto Mulheres da Paz que também concede bolsas, mas neste caso para mulheres líderes de comunidade que atuam como mediadoras de conflitos em suas regiões, teve gastos sete vezes menores em 2021 do que no primeiro ano de mandato de Bolsonaro: R$ 184,7 mil (em 2019) contra R$ 25.460,00 (até julho deste ano).
Segundo informações prestadas pelo Ministério da Justiça (que utiliza como base de dados a Plataforma+Brasil, diferente da fonte escolhida pela reportagem para este levantamento) dos R$ 15,3 milhão disponíveis para serem gastos desde 2016 em políticas para mulheres, R$ 3,2 milhões foram desembolsados.
Metodologia
Através do portal do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento do Governo Federal, a reportagem selecionou 10 ações orçamentárias executadas entre 2016 e 2021 que têm a palavra “mulher” em seu título.
Das 10 ações selecionadas, seis estavam relacionadas ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e quatro ao Ministério da Saúde.
Das seis ações do MMFDH, cinco existiam em 2016. Em 2018, quatro dessas ações foram fundidas e deram origem a uma nova ação, tornando-se cada uma delas Planos Orçamentários (que seriam as gavetas das portas dos armários). Mesmo com a transformação, os recursos foram considerados na comparação da evolução do orçamento.
Das quatro ações contabilizadas no MS em 2016, só restou uma em 2021. Foi possível rastrear o caso da Rede Cegonha, que se transformou em um Plano Orçamentário — incluído no quadro comparativo desta reportagem
A reportagem solicitou à pasta que explicasse o fim das demais ações para eventualmente somar os valores, mas a resposta que obteve foi bastante genérica: “ O Ministério da Saúde informa que as políticas públicas de Saúde da Mulher estão em constante construção destinadas para a redução da mortalidade materna, fortalecimento do pré-natal, estruturação do cuidado materno infantil em rede, oferta de contraceptivos e capacitação de profissionais de saúde. A pasta destaca que há constante revisão e consolidação das ações e que não há fragilidade em manter os programas direcionados para a saúde da mulher diretamente em planos orçamentários, ao invés de em ações orçamentárias, visto que o orçamento para a execução da política pública se mantém e as políticas continuam ativas”.
Para os cálculos desta reportagem, foram considerados os valores incluídos nas etapas “autorizada” e “restos a pagar + pago”— que contabiliza todo o recurso desembolsado em um único ano, ainda quando se refira a projetos contratados em anos anteriores.
Os valores foram coletados na plataforma Siga Brasil, ajustados pelo IPCA de junho de 2021
A tabela para consultar todos os valores pode ser baixada neste link.