Mulheres na linha de frente da COVID-19

A luta contra o Coronavírus tem o rosto de mulheres. Isso porque aproximadamente 70% de profissionais da saúde são profissionais de enfermagem e elas compõe quase 90% do setor no mundo.  Sabendo disso, a Assufsm realizou na sexta-feira (29), a Live Sindical “Mulheres na linha de frente da COVID”, com a intenção de dar destaque ao trabalho majoritariamente feminino na luta contra o Coronavírus.

A transmissão (acesse aqui) contou com a participação da enfermeira e servidora da Secretaria de Saúde do Paraná, Letícia Faria e a mediadora foi a Jornalista da Assufsm, Stéphane Powaczuk. Durante a conversa, a enfermeira deu relatos sobre as inseguranças e medos quanto a estar na linha de frente do combate a uma pandemia.

Confira abaixo trechos da entrevista.

(Stéphane Powaczuk) – Você trabalha no pronto socorro com suspeitos e confirmados de COVID-19, como é para uma mulher, profissional da saúde enfrentar esse desafio?

Primeiro, como foi mencionado na abertura, a categoria de enfermagem, ela é majoritariamente feminina e é a maior categoria de profissionais de saúde, de modo geral. Somos diferentes mulheres, somos jovens, temos mulheres mais velhas que se preocupam com os netos, temos mulheres jovens que são mães e se preocupam com os filhos pequenos, mulheres que tem filhos um pouco maiores… enfim tem toda essa diversidade, mas também tem algo em comum que é o nosso ser mulher e aí a gente tem uma série de desdobramentos com relação a um aumento do trabalho, né? A sobrecarga da linha de frente, a sobrecarga das tarefas domésticas, cuidados com alimentação e higiene do ambiente doméstico, de nós mesmas e com relação aos filhos, para as mulheres que são mães.

(Stéphane Powaczuk) – Muito importante tu tocar nesse assunto porque nós sabemos que muitas dessas mulheres acabaram e vão acabar contraindo o vírus. Eu queria saber se você tem como compartilhar conosco alguns relatos dessas mulheres que acabaram virando pacientes.

Então, com relação a profissionais de enfermagem, infelizmente o Brasil hoje é o país que mais perdeu profissionais de enfermagem. E quando a gente fala em profissionais de enfermagem é importante que a gente entenda que estamos falando de mulheres, né? Com relação às mães e os filhos pequenos, eu tenho uma colega de trabalho que tem um bebê de um ano e seis meses e ela não suportou emocional e psiquicamente estar ali sob a tensão de contrair o vírus e poder levar para a casa e passar para a família que acabou sendo realocada em outro setor de trabalho. Também tem um depoimento interessante de uma mulher jovem, mãe de um bebê pequeno, que chegou no pronto-socorro, com sinais de falta de ar, de insuficiência respiratória que me relatou que tem filhos e que um dos filhos é pequeno. Naquele momento eu tentei estabelecer uma conversa, trazer palavras de conforto porque também é nossa função… mas eu confesso que fiquei emocionada, embargada e nesse sentido, que bom que os EPIs até escondem um pouco a nossa situação de, às vezes, emocionar e segurar as lágrimas junto aos pacientes. Foi uma situação bastante difícil.

(Stéphane Powaczuk) – No momento em que você comentou sobre a situação das mães aí e nós sabemos que existem muitas profissionais acabam se afetando psicologicamente. Vocês possuem, em Curitiba, uma rede de apoio para os profissionais de saúde?

Existe um serviço de apoio psicológico, vinculado a medicina do trabalho, do Hospital do trabalhador, onde eu atuo. Mas existe um estigma muito grande, do profissional de saúde adoecer. Nós não nos permitimos, nesse momento, de linha de frente, muitas vezes assumir que nós estamos numa situação de fragilidade, que estamos numa posição de exposição maior, de um medo, de uma tensão permanente. Então existe um serviço que dá essa possibilidade de acesso, mas existe uma resistência muito grande também, das trabalhadoras de buscar o acesso a esses dispositivos. Eu acredito que isso deveria ser discutido mais abertamente… de que esse desgaste é real e da gente se permitir também ser cuidada, né? Uma enfermeira, mulher, é aquela que cuida do outro. Mas que, muitas vezes, tem uma dificuldade em se ver colocada no papel de que é aquela que precisa de cuidados. Acredito que campanhas nesse sentido, de conscientização das trabalhadoras e mesmo de solidariedade por parte das entidades sindicais e dos movimentos populares seriam bastante importantes.

(Stéphane Powaczuk) Como foi para ti receber a informação que trabalharia na linha de frente ou foi uma escolha tua?

Olha, não te digo que foi bem uma escolha, eu fui nomeada em meio a pandemia. Quando eu fui tomar posse, eu tinha duas possibilidades: ou Pronto Socorro do COVID-19 ou um trabalho mais administrativo. Eu tenho experiência em UTI, tenho experiência em Pronto Socorro, experiência na Assistência intra-hospitalar na beira do leito do paciente. Eu senti que era um desafio, muito medo. Chorei, achei que ia morrer logo na primeira semana, comecei a pensar em escrever cartas de despedida, mas achei que meu lugar era estar onde eu estou hoje. Não conseguiria ficar bem, realizando um trabalho administrativo hoje, tendo experiência de 8 anos de atendimento na beira do leito do paciente que é onde eu gosto de estar. Eu convidei meus amigos para assistirem essa live, se alguém tiver me vendo, eu gostaria de agradecer a vocês. Agradecer todo o apoio, todo o afeto. Já são mais de 70 dias e tem um grupo especial de pessoas que não me abandona, que sempre me manda mensagem, que me escrevem cartas, que me mandam mimos e presentes em casa. Eu queria dizer para vocês que quando a gente joga com torcida, quando eu olho para cima, olho para trás e sei que o pensamento de vocês está comigo e toda essa energia, nós atuamos melhor. Me sinto fortalecida, me sinto confiante, eu consigo atender melhor, enfim, de alguma forma eu sinto que não estou sozinha.

– Letícia, eu gostaria que você deixasse uma mensagem para as pessoas que estão nos acompanhando com relação ao momento em que estamos e quanto a perspectiva da vida pós COVID.

Olha, nós estamos passando por um momento muito crítico da história recente do Brasil. Apesar de estar na linha de frente, eu poder estar aqui fazendo uma live é uma forma de eu poder estar contribuindo com os movimentos sociais e o movimento sindical. A democracia, a liberdade, essa condição de estarmos nos organizando está ameaçada. Existe uma ameaça de golpe ao regime democrático de direito no Brasil hoje. Vencer a pandemia, passa por vencer essa escalada autoritária. Nós falamos aqui sobre opressões às mulheres… eu não quero deixar de falar, da escalada brutal do racismo, aqui nas Américas, nos dois países mais atingidos pela pandemia. A morte de João Pedro e George Floyd. Não é ocasional que aconteça nos países em que temos os maiores números confirmados de COVID-19. Essa escalada autoritária, violenta, de medo, o descaso com a pandemia… só é possível virada nesse cenário, com a organização da nossa classe. Defender a democracia nas ruas, se assim for preciso. Nesse sentido eu gostaria de saudar aqui, as torcidas organizadas do Grêmio e do Internacional, que nesse final de semana colocaram os fascistas para correr nas ruas, mantendo as medidas de isolamento social, higiene e controle. Manter aquilo que a ciência afirma frente a pandemia, não nos exime de fazer a disputa da democracia nas ruas. Eu acho que essas lutas estão combinadas. Vou reforçar isso, apesar da pressão dos grupos econômicos para que saiamos às ruas e pela liberação do comércio… nós temos hoje, comprovadamente eficaz para o controle da disseminação do vírus e no sentido de cuidado a nossa saúde são as medidas de higiene e isolamento social. Eu gostaria de trazer nesse final, uma mensagem de esperança. De que nós estamos na linha de frente, tentamos a todo tempo salvar o maior número de vidas possíveis, nós lutamos a cada minuto e a cada momento para manter um direito elementar e fundamental, que é também um direito constitucional e que todas essas lutas pela democracia e a luta contra a pandemia é a luta pela vida. Nesse momento, eu convoco vocês para isso, para que nós mantenhamos essa luta pela dignidade e pela vida.

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