Há dois anos do início da pandemia e diante do maior surto de infecções por covid-19 já registrado, chefes de Estado e de governo ainda divergem sobre as políticas públicas que serão adotadas para frear os contágios.
Na última segunda-feira (10), o mundo bateu um recorde de mais de 3 milhões de infectados em apenas 24 horas, puxado pelos EUA que registrara 1,48 mihão de casos em apenas um dia – o equivalente aos contágios da Ásia e Europa juntas. Ao todo, já foram registrados 308.458.509 casos e 5.492.595 mortes causadas pelo novo coronavírus, de acordo com a Organização Mundial da Saúde.
Estudos preliminares sugerem que a ômicron poderia ser mais contagiosa, mas menos patogênica. No entanto, a diminuição das mortes e hospitalizações também pode ser um reflexo da vacinação de 60% da população mundial.
O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus alertou na última semana que a nova cepa não deve ser considerada “branda” já que também está levando à internação e quadros mais graves pacientes que não foram imunizados.
“A pandemia está mostrando claramente que não há saída individuais. Nem de países, nem de pessoas. Então a vacina tem que ser um bem comum, com a quebras das patentes”, defende a médica e professora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Lúcia Souto.
Para a médica infectologista e professora da Escola Bahiana de Medicina, Maria Fernanda Grassi, a medida de contenção mais efetiva continua sendo a vacina, considerando que após dois anos da pandemia é quase impossível reduzir a mobilidade da população. O problema está na concentração de doses em países ricos.
“Percebemos uma extrema desigualdade na distribuição das vacinas, com países ricos, como Israel, iniciando a quarta dose e uma parte grande população mundial sem acesso à primeira dose da vacina”, critica.
Cerca de 35 milhões de doses são aplicadas diariamente, mas a desigualdade permanece. Somente 9,5% das pessoas em países pobres puderam ter acesso à primeira dose. O continente africano possui apenas 9,8% da população totalmente imunizada. Os dados são da plataforma Our Wolrd in Data, criado pela Universidade de Oxford.
A OMS adverte que a estratégia de vacinação baseada em repetidas doses adicionais da mesma composição de vacina “não é apropriada e nem sustentável” e reiterou a urgência de chegar a 70% da população de todos os países vacinada até metade de 2022.
Passaporte Vacinal
A União Europeia já adquiriu 4,6 milhões de doses extras para a realização de uma segunda campanha de reforço com a aplicação da quarta dose. Entre os países do bloco, cerca de 73% da população foi imunizada. A comunidade adotou a exigência de passaporte de vacina para a circulação interna.
A OMS prevê que 50% da população europeia poderá ser infectada pela ômicron em até dois meses. Os países mais afetados pela nova cepa são a França com mais de 296 mil casos diários, Itália com 155 mil e Reino Unido com mais de 141 mil contágios nas últimas 24 horas.
Na França, cerca de 5 milhões de pessoas recusam a imunizar-se. O presidente Emmanuel Macron disse que iria “incomodar” os negacionistas para promover a vacinação, o que o fez perder a popularidade nas últimas pesquisas de opinão para a candidata de extrema direita Marine Le Pen na disputa pela presidência.
“O passaporte da vacina não é uma novidade. Por exemplo a febre amarela, que é uma doença com a qual a gente convive há bastante tempo, que tem vacina e se exige comprovante de vacinação para inúmeros países. Qual é a novidade? É a força da extrema direita com o seu negacionismo, que fez surgir essa falsa discussão: ou passaporte da vacina ou enfrentar a desigualdade. Isso é o pior dos mundos”, comenta Lúcia Souto, diretora do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES).
Na América Latina vários países também já adotaram a política do passaporte vacinal, como Bolívia, Peru, e o Equador, que exige comprovante de vacinação inclusive para a circulação entre estados.
Os únicos países da região decididos a manter as fronteiras abertas com poucas restrições a pessoas não vacinadas são México e Brasil.
Nas últimas 24 horas, os mexicanos voltaram a bater um recorde de contágios com 33.626 novos casos, acumulando 4,1 milhões de contagiados, incluindo o presidente Andrés Manuel López Obrador, que contraiu a doença pela segunda vez, mas alega apresentar sintomas leves. Cerca de 63% dos mexicanos recebeu pelo menos uma dose da vacina contra a covid-19.
No Brasil, a nova variante aumentou em 2.000% o número de casos na primeira semana do ano e tornou-se predominante em menos de dois meses. A ômicron também é a variante dominante ao redor do mundo, informa a OMS.
Lockdown e maiores restrições
Diante do ressurgimento de focos da covid-19, a China, que já vacinou 87% dos 1,4 bilhão de habitantes com ao menos uma dose das duas fórmulas, decidiu implementar o lockdown ou bloqueio total em três cidades. A nova etapa de isolamento social atingirá cerca de 20 milhões de habitantes e está ligada à política de “covid zero”, implementada pelo governo chinês desde o início da emergência sanitária.
Há países que debatem medidas mais drásticas para conter o avanço do vírus. O presidente da Filipinas, Rodrigo Duterte, autorizou as autoridades de segurança a prender cidadãos que circulem pelo país sem ter se vacinado. Apenas 34% dos filipinos completaram o ciclo de imunização.
No Canadá os legisladores discutem impor multas àqueles que não se vacinarem, que representam cerca de 6 milhões de pessoas.
“A vacina não é 100% eficaz, ela é uma estratégia de saúde pública coletiva, então quanto maior o número de pessoas que se vacinam, maior a proteção da comunidade. Não é uma questão individual”, explica a professora da Escola Bahiana de Medicina, Maria Fernanda Grassi.
Brasil como ator global
Enquanto várias farmacêuticas anunciaram que estão trabalhando para produzir até março novas doses com composições voltadas a combater a ômicron, a Fundação Oswaldo Cruz divulgou que o Brasil será capaz de distribuir 21 milhões de doses de fórmula nacional contra o vírus SARS-CoV-2, chegando a 130 milhões até junho.
“E até o final do ano poderíamos dobrar essa produção, chegando a 300 milhões de doses. E nós podemos doar vacinas aos países que precisam. Com isso começamos a ter força política e social para virar o jogo a nível global”, defende Lúcia Souto.
As duas especialistas insistem que não é a falta de efetividade das vacinas que deixa mais distante o fim da pandemia, mas sim a concentração das doses.
Caso a imunização da população mundial aumentasse num nível mais acelerado que as infecções pela variante ômicron, poderíamos pensar num cenário em que a infecção causada por covid-19 torne-se endêmica, quando a presença do vírus é permenante e constante, mas não descontrolada.
“Ao que tudo indica vamos caminhando para isso, mas eu não ouso dizer que será assim, porque essa infecção nos surpreendeu desde o início. Então neste momento, com os dados que nós temos, a ômicron é menos patogênica, embora muito mais transmissível que as outras. O que estamos vendo é uma avalanche de casos, mas vamos torcer para que ela continue nesse caminho: dando quadros respiratórios mais leves”, comenta Maria Fernanda Grassi.