20 de setembro – Dia do e da Gaúcha, Revolução Farroupilha e a história dos Lanceiros Negros

Também conhecida como Revolução Farroupilha, a revolta foi travada durante dez anos (1835-1845), tornando-se a guerra civil mais longa da história do país. De um lado, estava o governo imperial brasileiro. Do outro, a elite gaúcha insatisfeita com os altos impostos cobrados sobre seus produtos.

A partir da declaração de independência da então província de São Pedro do Rio Grande do Sul, em 1836, os farroupilhas perceberam que não havia homens o bastante para fazer frente às tropas imperiais. Por essa razão, os republicanos começaram a cooptar negros escravizados. Mas não os seus.

“Em vez de cederem a própria mão de obra, os farroupilhas capturavam os negros dos adversários, que serviam aos imperiais ou estavam foragidos, com a promessa de alforria após o fim da guerra”, explica o jornalista Juremir Machado da Silva, autor de História Regional da Infâmia: o destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras (L&PM, 2010).

Os negros, portanto, não lutavam pelos ideais farroupilhas, mas pela chance de liberdade. Embora também atuassem como infantes (soldados em pé), acabaram conhecidos na história como “lanceiros negros”.

Ilustração do Massacre dos Porongos, pintada pelo artista Thiago Krenning
Foto: REPRODUÇÃO/TVE-RS

Estima-se que, no final da guerra, eles representavam até um terço das tropas farroupilhas, ou aproximadamente 10 mil homens. Era praticamente a metade do contingente imperial.

Para responder à crescente participação dos negros, os imperiais decretaram em 1838 a “Lei da Chibata”. Ela determinava que todo escravo que fosse preso fazendo parte das forças rebeldes receberia de 200 a 1.000 chibatadas.

A ameaça não arrefeceu o ímpeto dos escravos, que continuaram a engrossar as fileiras rebeldes. Mas, apesar da grande serventia nas batalhas, os negros acabariam se tornando um “problema” para os farroupilhas. Sobretudo quando ficou evidente que aquela seria uma guerra perdida.

A traição de Porongos

Diversos conflitos da Revolução Farroupilha se deram na região da campanha gaúcha, faixa do bioma pampa colada à fronteira com o Uruguai, com seus campos repletos de serras e coxilhas.

Pois foi no alto de uma delas, conhecida como Cerro dos Porongos, localizado no atual município de Pinheiro Machado, que aconteceu um dos ataques mais violentos da guerra dos farrapos.

Há 176 anos, na madrugada de 14 de novembro de 1844, um esquadrão de lanceiros negros acampado no Cerro dos Porongos foi surpreendido e arrasado pelas tropas imperais.

Pouco mais de cem homens negros foram assassinados. Os que não escaparam para quilombos ou para o Uruguai acabaram enviados à corte, no Rio de Janeiro, onde seguiram escravizados até a Lei Áurea, 43 anos depois.

Ilustração sobre a chacina, pintada pelo artista Thiago Krenning para o programa Nação da TVE-RS
Foto: REPRODUÇÃO/TVE

Há controvérsias sobre o que teria facilitado o Massacre dos Porongos. A maioria das evidências históricas, porém, indica que a chacina é resultado da traição do general David Canabarro, homem forte dos farroupilhas.

À época, reconhecendo a iminente derrota, os rebeldes tentavam negociar uma anistia com o império. O governo de Dom Pedro 2º prometeu pensar na proposta. Entre as condições para o induto, constava a devolução dos escravos capturados.

O problema é que a exigência não agradaria muitos dos chefes rebeldes, envergonhados com a renúncia, e tampouco os negros a quem os farroupilhas tinham prometido liberdade.

Para resolver o impasse, Canabarro teria feito um conchavo com os imperiais. “Ele escreveu ao Barão de Caxias, tramando a data e o local para um ataque ao acampamento dos negros”, diz o historiador Jorge Euzébio Assumpção, autor de Pelotas: Escravidão e Charqueadas 1780-1888 (FCM Editora, 2013).

Além de fazer um conluio com os imperiais, Canabarro relativizou alertas de aproximação inimiga e desarmou os lanceiros negros na véspera do ataque. O general alegou que a munição velha seria substituída por outra mais nova e, assim, entregou os guerreiros negros de bandeja aos imperiais.

O general farroupilha nunca deu grandes explicações sobre o ocorrido. Seus defensores dizem que, no momento da investida, o general estava ocupado como uma das vivandeiras (mulheres que acompanham as tropas com a missão de cozinhar, curar ferimentos e orar pelos moribundos). E que, por essa razão, não teria flagrado a carnificina.

O ataque foi a pá de cal não apenas para os soldados negros como também para a própria Revolução Farroupilha.

“O combate de Porongos, que mais foi uma matança de um só lado do que peleja, dispersou a principal força republicana, e manifestou estar morta a rebelião”, escreveu Tristão de Alencar Araripe no livro de memórias A Guerra Civil no Rio Grande do Sul, publicado em 1881.

O tratado de paz foi selado quatro meses depois do Massacre dos Porongos, em 28 de fevereiro de 1845, quando Canabarro assinou o acordo confiando na “palavra sagrada” e no “magnânimo coração” de Dom Pedro 2º.

O professor Jorge Euzébio Assumpção em protesto contra o racismo, em Porto Alegre
Foto: Arquivo Pessoal

Herança maldita

Todos os anos, no Rio Grande do Sul, comemora-se a tradicional Semana Farroupilha, quando o povo gaúcho realiza festejos e acampamentos que celebram e rememoram os ideais, a república e o grito de guerra ecoado em 20 de setembro de 1835.

O Massacre dos Porongos, porém, ainda passa ao largo da maioria das atividades promovidas em Centros de Tradições Gaúchas (CTG) e acampamentos pelo Estado. Para se ter ideia, apenas em 2004 foi erguido o Memorial Lanceiros Negros em Porongos, um pequeno monumento em homenagem aos guerreiros mortos na emboscada.

“Existe uma clara intenção política em não abordar esse tema nos festejos de setembro”, diz o historiador Jorge Euzébio Assumpção. “Essa sonegação histórica acontece porque os farroupilhas são um símbolo de poder do Rio Grande do Sul , e falar da traição contra os negros é desmitificar o gauchismo.”

Só que Porongos não foi, exatamente, a única traição dos farroupilhas contra o povo negro, segundo Juremir Machado da Silva. “Nessa revolução que muitos afirmam ser abolicionista, vários negros foram vendidos no Uruguai para financiar o movimento.”

Apesar de ainda desconhecida para muitos brasileiros (e para muitos gaúchos, na verdade), a história do Massacre dos Porongos tem ganhado crescente relevância, sobretudo em razão das pesquisas históricas e do crescimento do movimento negro.

Para Juremir Machado, a chacina dos lanceiros é apenas um tijolo do racismo estrutural construído ao longo o tempo.

“A traição dos farrapos, a aprovação em 1854 da lei que previa a prisão de quem alfabetizasse negros, a falta de um plano de inclusão após a abolição: essas e outras situações são heranças que alimentam o desrespeito que ainda coloca o negro, digamos assim, numa posição secundária”, diz o jornalista.

“No entanto”, ele complementa, “ver o empoderamento dos negros na TV, na literatura ou a massa de pessoas nos protestos do João Alberto Freitas (homem de 40 anos que morreu após ser espancado por seguranças em uma unidade do Carrefour, em Porto Alegre) mostra que as coisas estão mudando. Devagar, mas estão mudando.”

Texto: BBC News Brasil

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