Grupos sociais começam a ganhar espaço na administração pública e encabeçam ações contra a desigualdade
As políticas transversais com a participação de representantes dos diversos polos da sociedade, como negros e pessoas LGBTQIA+, estão conquistando mais espaço dentro da administração pública. Para especialistas, esse seria o primeiro passo para construir um setor público mais inclusivo e com resultados concretos para demandas da diversidade.
“Se a gente quer novas políticas comprometidas com a desigualdade e sensíveis às necessidades dos diferentes grupos, temos que trazer dados, mas também a representatividade. Fazer dos representantes desses grupos parte do processo decisório”, disse Ana Paula Rodrigues Diniz, professora no Insper.
Ainda de acordo com a especialista, “pessoas com diferentes backgrounds e experiências vão olhar para os problemas de formas diferentes. E se todos nós temos limites na nossa percepção, na nossa análise da realidade, a gente pode ter diferentes pontos de observação que enriquecem o processo, isso inclusive identificando quais ações, políticas e comportamentos que contribuem para a desigualdade.”
Esta é a 8ª e última reportagem da série O Profissional Público do Futuro, parceria entre a Folha e a República.org, que debateu temas para a modernização do serviço público no Brasil vocação, formas de entrada e a capacitação para as novas tecnologias.
Trabalhando desde 2005 na administração pública, a cientista social Ângela Guimarães, professora de sociologia concursada na rede estadual de educação, assumiu a secretária de Promoção e Igualdade Racial da Bahia em janeiro de 2023, na entrada da gestão Jerônimo Rodrigues (PT) no estado. Está desde 1999 militando pelo movimento negro.
“A presença de gestores e gestoras negras na estrutura do estado, participando da elaboração das políticas públicas, é reclamada há muitas décadas pelos movimentos da luta antirracista. O nosso papel nessas secretarias transversais é exatamente ecoar e abrir e costurar caminhos”, disse Ângela.
Apesar dos avanços, a secretária diz que são inúmeras as barreiras encontradas na administração pública. Esses obstáculos vão desde o baixo orçamento até a falta de reconhecimento.
“Até mesmo o processo de conseguir acesso a outros secretários e secretárias para transnacionalizar política [para discutir programas]. Ter acesso aos prédios públicos, porque as pessoas sempre questionam se é você mesmo a secretária ou em inaugurações de eventos perguntam se é você mesmo a pessoa que tem que ocupar aquele lugar. São ações cotidianas, mas a gente está aqui para enfrentá-las e derrubá-las.”
Para Juliana Cristina Teixeira, professora do programa de pós-graduação em administração da Universidade Federal do Espírito Santo, ter diversidade na composição de uma equipe cumpre algumas demandas por ocupação de quadro, no entanto, não significa que necessariamente se refere a uma diversidade que está sendo tratada dentro das suas diferenças.
“Quando a gente pensa em políticas públicas que vão colher a diferença, a gente está pensando em políticas públicas e mecanismos de gestão que estejam de fato alinhados com as pautas desses movimentos sociais. Não adianta colocar essa diversidade para dentro se ela não vai ser ouvida em sua plenitude. É um risco da superficialidade dessa ocupação.”
Em 2006, David Henrique da Silva Pereira, 37, começou a dar aulas de alfabetização e saberes tradicionais (estudo da etnia local) para anos iniciais em escola estadual dentro da aldeia Ekeruá, na terra indígena de Arariba, em Avaí (SP), onde cresceu e vive até hoje. Para ele, ensinar alunos de um grupo que ele representa é fortalecer e perpetuar a identidade cultural.
“Uma escola na aldeia com professores da aldeia tem o papel de formar um cidadão que possa ser inserido numa sociedade não indígena, mas que, ao mesmo tempo, tem garantido o reconhecimento da identidade cultural para que a história do seu povo não se perca”, afirmou ele, que atualmente é professor especialista em currículo de educação escolar indígena da Diretoria de Ensino de Bauru, da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo.
Pereira explicou que esse aluno aprende boa parte da sua cultura na própria escola, com professores indígenas, e também são alfabetizados na língua das aldeias ao qual pertencem, além de português e inglês. No caso da Ekeruá, a língua é a terena. “A representatividade é essencial para passar esse conhecimento para as gerações futuras.”
A delegada Jamila Jorge Ferrari, coordenadora das DDMs (Delegacias de Defesa da Mulher), da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, já enfrentou machismo em sua carreira de mais de 20 anos, tanto de colegas de trabalho como dos próprios suspeitos —um deles se recusou a responder suas perguntas num interrogatório por ela ser mulher, mas foi solícito quando um homem fez os mesmos questionamentos.
Por essas e outras, para ela, ter representação feminina nas delegacias pode evitar situações em que as vítimas não se sintam acolhidas ao denunciar as agressões que sofreram. Ela já trabalhou em casos de homicídio, feminicídio, violência contra mulher, crianças e adolescentes.
“As mulheres buscam solidariedade e sororidade. De alguma forma, elas se sentem mais encorajadas em contar para outra mulher o que aconteceu com elas porque a delegada ou escrivã, se não viveu aquilo, entende o que ela passa.”
A terceira gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) procurou dar um maior protagonismo à diversidade. Dos 37 ministros, 11 são autodeclarados negros ou pardos. Também há indígenas e uma mulher trans, Symmy Larrat, que assumiu a Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, pasta ligada ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
“É importante deixar nítido E não só falar que apoia uma pauta, não só falar que apoia um momento de visibilidade, não só falar que apoia as políticas. Há de se ter práticas que demonstrem que realmente nós estamos preocupadas com a promoção da vida e a proteção dessas pessoas e dessa população”, diz a secretária.
“Ter no quadro funcional, no espaço de poder, uma pessoa transgênero é demonstrar que nós queremos que essas pessoas também falem por si, que essas pessoas também promovam o fazer público e contribuam com a gestão.”
Para a professora Juliana Teixeira, a presença dos grupos minoritários dentro da administração pública deve ser mais ampla, não apenas voltada a área em que a pessoa esteja inserida dentro da sociedade.
“É importante que esses grupos sejam diversamente ocupados em todas as áreas de governo. É muito comum a gente pensar, por exemplo, que as pessoas negras só pudessem estar nos espaços que pautem e gerem políticas diretamente raciais”, diz a professora.
“É preciso que esses grupos diversos estejam nos espaços ligados ao desenvolvimento econômico, nas pastas do Ministério da Fazenda, do Planejamento, do Desenvolvimento Agrário. Não adianta só colocar nas pautas específicas de diversidade. É pensar que essas categorias de gênero, raça, orientação sexual definam a estrutura social como um todo.”
Fonte: Folha de São Paulo