As utopias nos diziam que com o avanço tecnológico poderíamos trabalhar menos, ter mais tempo para nós. As maravilhas tecnológicas estão aí. Porém, estamos trabalhando cada vez mais. Entre a literatura que descrevia uma melhora sensível do mundo do trabalho em razão do progresso tecnológico, está uma obra de Monteiro Lobato, da qual lembrei muito quando fazíamos trabalho remoto, durante a pandemia. Trata-se de O Presidente Negro, livro de ficção científica, publicado na década de quarenta. No futuro projetado, as eleições seriam virtuais, como efetivamente já ocorre, haveria transmissão instantânea de imagens e, graças à capacidade de comunicação, grande parte do trabalho seria realizado virtualmente. Por conta disso, diz a obra, as pessoas teriam mais tempo para efetivamente viver. Vejamos um trecho:
A roda, que foi a maior invenção mecânica do homem e hoje domina soberana, terá seu fim. (..) O que se dará é o seguinte: o rádio-transporte tornará inútil o corre-corre atual. Em vez de ir todos os dias o empregado para o escritório e voltar pendurado num bonde que desliza sobre barulhentas rodas de aço, fará ele o seu serviço em casa e o radiará para o escritório. Em suma: trabalhar-se-á à distância. E acho muito lógica esta evolução.
(…)
Voltará o homem a caminhar a pé, por prazer, e as ruas se tornarão uma delícia. (1)
No entanto, a prática tem mostrado um caminho inverso às expectativas. O que notamos, dito de maneira resumida, é que onde trabalhava um para sustentar uma família numerosa, hoje trabalham dois para manter uma família diminuta. A jornada de trabalho continua longa, o acesso aos bens produzidos é restrito e a concentração de renda cada vez mais intensa, ao passo que o emprego e o direito dos trabalhadores mais ameaçados e precarizados. No caso brasileiro, sob efeito negativo, também, da reforma trabalhista e da Previdência.
No atual modelo social exalta-se o valor do trabalho, mas não o do trabalhador. Por isso, o tempo de vida previsto, contado, normatizado e normalizado é o do trabalho. Gravitando em torno dele precisam se acomodar os demais tempos, quando e como for possível. Inclusive o tempo para a vida familiar, tão alardeada na ideologia oficial, deve acomodar-se à sobra do tempo de trabalho, em muitos casos mediante atestado ou laudo médico. Depositamos ali o nosso tempo de vida e nos tornamos, como dizia Belchior “aquela gente honesta boa e comovida/ que caminha para morte pensando em vencer na vida”.
É nesse cenário que, sob o influxo das novas tecnologias de informação e comunicação, surge o PGD nas relações de trabalho. Em relação às Universidades, já existem diversas experiências em andamento. No Rio Grande do Sul, podemos enumerar UFRGS, UFPEL, UNIPAMPA, UFFS, com PGD em atividade, todas com possibilidade de teletrabalho integral ou parcial. E ainda o IFFAR, o IFRS e o IFSUL, ambos, também com o modelo de teletrabalho integral ou parcial. No caso da UFSM, a implantação desse modelo está sendo um pouco mais tardia, havendo, como se sabe, a perspectiva de começar a funcionar efetivamente a partir do segundo semestre de 2024. Nesse conjunto de instituições, será a única em que a possibilidade de teletrabalho deverá, conforme proposto hoje, ser somente parcial.
Há um elemento que não pode ser esquecido ou negado quando se fala de PGD: a pandemia do COVID-19. Dizia-se à época que deveríamos sair melhores da pandemia, que muito aprenderíamos com ela. Pois bem, eu aprendi na segunda semana que dispúnhamos do VPN, através do qual poderíamos trabalhar de maneira remota. Através desse recurso, garantimos nossa vida e a da Universidade, que mantivemos de pé, funcionando. Mostramos responsabilidade frente à epidemia e frente ao trabalho. E parece fora de dúvida que essa experiência guarda uma rica relação com o PGD e com o teletrabalho. Aliás, é o que se vê na página do Governo Federal, quando afirma:
O ano de 2020 foi o mais significativo para a expansão e a consolidação do Programa de Gestão. A principal razão foi a situação de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus (COVID-19). (…) Pode-se considerar que essa brusca ruptura cultural levou órgãos e entidades a repensar o modelo convencional de gestão do trabalho no serviço público brasileiro. (2)
Infelizmente, porém, na página na página da UFSM sobre o PGD não encontrei referência à pandemia, a não ser para opor integralmente o teletrabalho ao trabalho remoto em uma questão do “Perguntas e Respostas”. Assemelha-se a um processo de apagamento da memória e da história nossas. Guardadas as proporções, é algo que chega a lembrar Gabriel G. Márquez (Cem Anos de Solidão) ou E. Verissimo (Incidente em Antares).
Como se trata de momento de implantação do PGD, estão ainda bem delineados dois rumos distintos que podem ser seguidos. Um, o que pretende se apropriar das tecnologias para controlar ainda mais a vida dos trabalhadores, quantificando e controlando-o através de horários e metas. O outro, que precisamos abrir, é o que coloca, de fato, a tecnologia a serviço do ser humano, tornando as relações de trabalho mais dignas e saudáveis e possibilitando maior tempo para a vida pessoal.
Frente a essas possibilidades referidas, a UFSM vive momentos de decisões importantes, necessitando definir, com sabedoria, clareza e capacidade de diálogo, de que lado da história pretende estar e de que lado, ao final, estará.
Referências Bibliográficas
- LOBATO, Monteiro. O presidente negro. – Chapecó: Ed. UFFS, 2020, p. 65. Disponível in: https://www.uffs.edu.br/institucional/reitoria/editora-uffs/o_presidente_negro
2.https://www.gov.br/servidor/pt-br/assuntos/programa-de-gestao/nova-in-2023/historico-do-pgd-na-apf
Francisco Mateus Conceição
Técnico em Assuntos Educacionais (UFSM).
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